sexta-feira, 25 de julho de 2008

UltraCell 3.5

Cecília estava exausta. Ficar estorricando o dia inteiro nas areias de Ipanema não era exatamente o seu passatempo preferido. Para ela a praia sempre significava momentos divertidos embaixo d´água, brincadeiras que resgatavam a inocência passada da infância, e então, quando o corpo já estava exausto do esforço físico e a pele enrugada pela osmose causada pelas salgadas águas oceânicas, era hora de recolher as coisas, comprar uma raspadinha de um dos infinitos vendedores ambulantes cariocas e zarpar fora para cuidar da sua vida. Sua prima Ângela, porém, pensava diferente. Para ela, ir à praia era apenas mais um pretexto para exibir seus artigos luxuosos, como uim óculos de sol importado de um lugar qualquer do mundo, um chapéu repleto de penas de alguma ave já extinta a alguns anos e um super celular-camaleão-camera fotográfica-identificador de odores-auto limpante-formato de pulseira que imitava perfeitamente a horrível textura da bolsa de couro de crocodilo sintético que ela insistira em levar consigo, apesar dos incessantes protestos da prima que alegavam que a praia de Ipanema possuia poucas coisas em comum com as pistas de desfile de moda em forma de corredores deslizantes do shopping Rio Sul.

- Além do quê, - observou Cecília - você não devia ter trazido esse celular também. Além de você ficar surfando o maldito ciberespaço atrás das últimas fofocas das suas amigas dondoquinhas e perder a oportunidade de surfar nas ondas do oceano atlântico, aposto que todos esses grãos de areia devem dar um trabalhão para as nanoestruturas amálgamas de carbono e silício controladas remotamente pelo processador central dele limparem. Você podia dar uma folga pra elas não ? Qualquer dia desses elas fazem uma greve trabalhista e você vai ter uma dor de cabeça dos infernos.

- Do quê diabos você tá falando Cecília ? Ficou maluca ? Essa água salgada toda deve ter afetado o seu hemisfério cerebral. - a voz de Ângela era, ao mesmo tempo, escárnia, artificial e patética.

- Só disse que talvez a praia não faça muito bem para esse seu brinquedinho hightech... - Cecília estava acostumada com a estupidez e futilidade da prima. Se divertia dizendo coisas que ela nunca entenderia, e a impressão de excentricidade que criava ao redor de sua pessoa com tais comentários eram apenas mais um irresístivel atrativo que fazia com que Cecília continuasse jogando pérolas aos porcos. Ficou um tempo afundada em seus próprios pensamentos, imaginando em que setor do conhecimento a ignorância da prima era maior: Na sutil arte da ironia, na morfologia cerebral ou no modus operandis do seu principal meio de comunicação com o infinito e insignificante mundo de futilidades e modismos capitalistas do século XXI. Demorou-se tanto rindo interiormente que quase não entendeu a resposta da prima. Felizmente, a natureza a havia dotado com processos cerebrais altamente mais velozes, o que a permitiu retomar o rumo conversa como se nunca tivesse se ausentado.

- Não seja tola prima. Você sabe que UltraCell 3.5 é totalmente à prova de sujeira. Além do mais, daqui 2 meses eu vou comprar a versão 4.0 e vou poder me livrar deste. Até lá as "estruturas nano-sei-lá-o-quê" dão conta do recado. Aff, quando você vai perder essa mania nerd de falar palavras científicas ? Acha que parece mais inteligente falando assim ? Pois pra mim parece muito mais boba!

- Puxa, então deu certo ! É justamente esse o meu objetivo ao falar assim. Tem idéia da quantidade de horas de sono que eu perco de madrugada fuçando a internet em busca de jargão científico para jogar na sua cara de forma a parecer uma bobalhona na sua frente ?

- ... ?! - Cecília sabia que sarcasmo era outra palavra ausente do raso vocabulário de Ângela, e apenas esperava a sentença óbvia que demorou alguns segundos para ser proferida: - Você é maluca mesmo !

3 comentários:

Perséfone disse...

Vamos ler o que o mestre diz a respeito do tema:

"Eu,etiqueta"

Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu bolso traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados aos meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que antes era e me sabia
tão diverso de outros; tão mim-mesmo,
ser pensante, sentite e solitário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação
Não sou,vê-la, anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar,para vender (...)
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem,
meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.


Carlos Drummond de Andrade. O corpo. Rio de Janeiro: Record, 1994, pp 85-7

Lendo palavras tão sábias,e sua ironia(marca registrada em seus discursos) penso no quanto o comportamento humano tem sido influenciado pelo consumismo,o descartável,o estar na moda,a troca constante de novas tecnologias por outras novíssimas,as ditaduras impostas pela mídia a aparência,e como tudo isso,vem deixando as relações cada vez mais vazias que uma bolsa da Vitor Hugo,mais frias que um sorvete da Kibon, mais anônimas que um site da anonymouse,mais irreais e falsas que as bijuterias folheadas e importadas da Aura Prata.

Anônimo disse...

Ei cara...


Quem é Cecilia?

Diogo Melo disse...

Cecília é uma amiga dos duendes... ;)

E ela tem um recado pra você, Revelações da Névoa. Parece que alguém tá tirando uma onda da tua cara... rs