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segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Sapatos de camurça azuis

Jim passara a última meia-hora tentando construir uma cadeia de eventos lógica que explicasse o seu atual paradeiro, deserto do Saara, trajando um terno preto com uma gravata de veludo vermelha por cima de uma camisa de cetim cinza, uma calça preta de veludo e sapatos de camurça azuis. O único fato que conseguiu confirmar foi o envolvimento de um magnífico peru assado. Já havia desistido do luxo de explicar a coisa toda e a sua própria vontade de escapar daquele inferno vinha timidamente atrás de um gigantesco impulso em direção ao cactus mais próximo. Precisava desesperadamente aliviar sua bexiga (o subconsciente de Jim tomou uma nota mental para lembrá-lo de procurar por água no interior da planta tão logo seus instintos mais imediatos fossem satisfeitos). Ao descer a samba-canção de seda verde e começar a aliviar sua bexiga Jim teve um sobressalto. Uma Ferrari vermelha vinha em sua direção ! Jim, na pressa de recolher sua uretra, acabou urinando nos sapatos, na samba-canção e nas calças. No entando não conseguiu pegar uma carona com a Ferrari que desapareceu no horizonte como uma miragem. Jim no entanto sabia não se tratar de uma ilusão de óptica causada pela refração dos raios solares na quentes camadas de ar da superfície do deserto pois conseguira ler dois adesivos na traseira do veículo: "se você só consegue me ver na faixa infravermelha do espectro estou dirigindo rápido demais." e "meu outro carro é um Porsche". 
Enquanto Jim lamentava ter perdido, simultaneamente, uma boa carona e uma excelente mijada, Clark, feliz proprietário de uma Ferrari, um Porsche e um espectômetro de massa lamentava que a mijada de Jim havia arruinado seu passeio pelo Saara. 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

A mulher do mitômano

- Foi mal Marcão, não vou poder ir ao jogo com vocês. Peguei uma gripe ferrada, vou ficar de cama. - Ao dizer tais palavras ao telefone, Roberto observou o ar gélido que Alice dirigiu em sua direção. Um par de olhos claros, penetrantes, que agilmente se levantaram do grosso volume de psicologia para o fitarem em evidente tom de reprovação. Desviou rapidamente o olhar enquanto se despedia do amigo. Se virou para a esposa, após retornar o fone ao gancho, com a certeza de que aqueles olhos ainda estavam voltados para a sua pessoa com uma temperatura que arrepiaria os pêlos da nuca de um esquimó.
- O que foi ?
- Nada. - O olhar glacial retornou ao livro num piscar de olhos.
- Alice, eu te conheço muito bem. Você estava com o olhar zero absoluto de novo.
- Se você me conhece tão bem, nem preciso dizer o que penso, não é mesmo ? Gostaria de conseguir esconder meus pensamentos de você do mesmo jeito que você esconde uma "gripe ferrada" de mim.
- Mas Alice, eu já disse que não sou mitômano! - Roberto contou, mentalmente e rapidamente, até dez. Sempre tinha que se esforçar para controlar sua raiva quando Alice dirigia seu afiado sarcasmo em sua direção. - Achei que você queria ir ao cinema comigo.
- Receio que não vamos poder. Melhor ficarmos em casa, eu faço um chá e ficamos a noite inteira debaixo das cobertas assistindo algum programa no Discovery Channel, que tal ? - Alice ostentava um leve e discreto sorriso que durou exato um segundo e meio.
- Alice, eu não estou gripado ! - Ele sabia que entregava numa bandeja prateada o tão esperado prêmio de Alice: sua confissão.
- Ora, quer dizer que você mentiu para o seu bom amigo Marcão ? Achei ter ouvido algo sobre você não ser nenhum mitônamo. Ah, mas que bobagem a minha. Nada mais natural para um mitônamo dizer que NÃO é um mitônamo. - novo sorriso.
- Alice, quantas vezes vamos bater na mesma tecla ? Já conversamos sobre o papel da mentira na nossa sociedade como um apaziguador social, como uma ferramenta indispensável na aparação das arestas dos conflitos sociais. Como algo ao qual cedo ou tarde precisamos recorrer para evitar certos tipos de constrangimento.
Alguns segundos se passaram, Alice respirou profundamente e relatou a história de um primo seu que era mitômano. Descreveu como ele se utilizava de mentiras e fantasias, desde criança, como uma forma de valorizar seu ego perante as pessoas. Com lágrimas nos olhos, diz que se arrepende de nunca ter conversado com ele sobre isso, principalmente depois de descobrir, um ano após seu suicídio, que depressão e tendências suicidas estão frequentemente associadas com mitomania. Não demorou muito tempo para Roberto telefonar ao seu amigo e contar o verdadeiro motivo que o impedia de ir ao jogo. Os olhos marejados de emoção de Alice possuíam um efeito maior sobre ele do que os gélidos, e ela sabia disso. Não pôde deixar de conter um sorriso, enquanto secava seus olhos no espelho do banheiro, ao pensar na ironia que era tentar curar um mitômano se utilizando de uma mentira deslavada. Era como tentar curar um fumante crônico soprando fumaça em sua cara, ela sabia, mas nunca havia tido nenhum suicida em sua família e não estava disposta a começar a ter.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

A Arte da Criação da Arte

Era uma reunião de emergência. As melhores mentes da humanidade haviam sido urgentemente chamadas para discutir a questão mais importante jamais levantada na história. Iriam discutir seriamente sobre o tráfego de informações.

- A situação é extremamente crítica - suspirou Leonardo.

-Sinais de perda de fé podem ser visto em todos os lugares - alertou Raphael.

- Pensar e sonhar são atividades cada vez menos praticadas e conhecidas - se desesperou Donatello.

- Estou triste - confessou Michelangelo.

Durante horas as maiores mentes da humanidade discutiam, explicando seus infinitos motivos pela perda de fé na humanidade. A alienação dos jovens, a amargura e conformismo dos velhos, a escravidão dos adultos. Não existia um lado que alguém olhasse e não presenciasse um crime animalesco contra o espírito humano. Aquele espírito tão cheio de potencial, com tanta capacidade para superar a si mesmo, porém, simultaneamente, tão medroso e preguiçoso. Se nada fosse feito, ninguém iria sair vivo daquele pálido ponto azul chamado Terra.

- Como vemos, graças à extensa e precisa análise de Ludwig, a qualidade de atividade intelectual dos indivíduos está altamente correlacionada com o respectivo fluxo de idéias. Spooky Clouds, o modelo que descreve tal fenômeno, toma como hipótese a idéia de nós de informação, encruzilhadas de sinapses altamente estáveis que funcionam como pontes entre diferentes idéias na mente de um ser humano. É tal fator aleatório o responsável por todas as tomadas de decisões e resoluções dos problemas, desde que a vida como a conhecemos surgiu.

- Alguém poderia ir direto ao ponto ? - Geraldo esfregava a cabeça, impaciente - Não temos exatamente todo o tempo do mundo aqui.


- O ponto, meus caros, é que precisamos encontrar uma solução efetiva para incentivar o fluxo de informação para o cérebro das pessoas. Um alto e constante fluxo age como um efetivo catalisador de nós, que por sua vez catalisa nossos sonhos... e o resto se escreve sozinho.

Um silêncio se fez no recinto, silêncio este que representava a cumplicidade de todas as mentes presentes. Todos concordavam que algo precisava ser feito urgentemente para salvar a obra-prima da natureza, o engenho mais complexo do universo conhecido, o cérebro humano! Mas, o quê ?

Um som rítmico repentinamente se fez ouvir no salão de reuniões. Era um ritmo preciso, contagiante, simples, rico, mágico. Eram sons produzidos por um bongô sendo constantemente estapeado. Risos de timbre feminino eram também audíveis à esta altura.

- Meninas, eu duvido que vocês tenham se divertido tanto quanto eu. Da próxima vez eu compensarei meus erros de hoje.

Quando as índias semi-nuas se fizeram ausentes, o tocador de bongô pareceu notar pela primeira vez os olhos que se dirigiam, reprovadores, para ele.

- E aí pessoal ! Tudo certinho ?

- Dick, meu amigo. Todos nós estamos acostumados com a sua, como eu diria isso, excentricidade - Quase imediatamente, a fala de Geraldo foi interrompida por Dick - E eu devo dizer que sempre apreciei muito tal postura meus colegas.

- Obrigado. - Geraldo meneou a cabeça modestamente - Dick, estamos enfrentando uma séria crise aqui, talvez a maior de todas, e precisamos de toda a ajuda disponível. E você bem o sabe que a sua ajuda sempre nos foi de extrema importância no passado. É de meu desejo que tal quadro continue a ser pintado hoje, meu caro, quando, como eu já disse, não podemos nos dar ao luxo de perder qualquer tipo de ajuda.

- Sim - Dick subitamente parecia ter trocado de personalidade, como um músico talentoso troca de instrumento no meio de uma apresentação - Já estou familiarizado com o conceito da crise, inclusive com o plano sobre o fluxo de idéias.

- Plano ? Não temos plano algum ! - Fred apoiava sua latejante cabeça em suas mãos, como se segurasse o mundo inteiro vacilante entre seus dedos - Tudo o que temos é essa vontade de, de alguma maneira qualquer, incentivaro fluxo de idéias na mente dos seres humanos. Mas não fazemos a menor idéia de como alcançar tal feito.

- Já é um começo. E que belo começo ! Há de surgir o plano bem sucedido que não tenha começado com uma vontade ou, melhor ainda, com um sonho.

- Precisamos de algo mais palpável que um sonho. - Geraldo começa a mostrar sinais de impaciência - Precisamos de pragmatismo, precisamos agir!

- Bem, eu tive uma idéia engraçada que pode dar certo. - Todos os olhos se voltaram, novamente, para Dick.

- Bom, - Dick rompia timidamente o silêncio que ele havia arquitetado. Sua boca estava seca, seu estômago repleto de borboletas. Se concentrou para não ser distraído pelas batidas de seu coração e continuou com o discurso semi-ensaiado - Para vender o nosso produto, no caso as idéias, precisamos de embalagens eficientes.

Uma comoção tomou conta do ambiente. Ninguém estava exatamente no clima apropriado para ouvir as pilhérias de Dick. Antes que os murmuros de descaso se tornassem sonoras vaias, a voz tímida de John ecoou, limpidamente, por todo o salão:

- Hey pessoal, vamos terminar de ouvir a idéia do Dick. Ele raramente nos desaponta.


Paz John ! - voltando-se para a descrente multidão, ele continuou com a sua propaganda - Sim, embalagens atraentes, instigantes, reconfortantes. Embalagens bonitas ! É disso que precisamos para vender nosso peixe.

O surdo silêncio que reinava parecia suspirar: ”Continue, sou todo ouvidos”, e ele continuou:

- É só observarmos um pouquinho o ser humano para notarmos que as coisas que ele não gosta são feitas extremamente de má vontade e com qualidade infinitamente inferior às coisas que ele gosta, às que ele se sente atraído, satisfeito por fazê-las. E não é preciso ser nenhum Alberto para sacar que o homem gosta, ou melhor, cultua a beleza.

- Ele tem razão - se surpreendeu Alberto - eu compraria qualquer coisa cuja embalagem lembrasse a beleza sagrada de um solo de violino.


- Mas, o que você está sugerindo ? - Geraldo não parecia estar seguindo a linha de raciocínio muito bem - Que comecemos a distribuir idéias de suma importância para o progresso da humanidade codificado nas notas de uma música ?

- Exatamente ! - Dick estava no apogeu de uma forte descarga de endorfina - E não apenas nas notas, mas nas letras. E em livros com histórias envolventes, em quadros, estátuas...

- Podemos incutir idéias e questionamentos em músicas populares. -animou-se Paulo.

- Ou cultuar a própria idéia de perfeição, que está sempre motivando as ações dos homens. - inspirou-se Plato.


- Ou revelar novos pontos de vista, novas perspectivas, novas maneires de se enxergar o mundo em pinturas. - empolgou-se Pablo.

- Preparar o mundo para uma nova era através de atraentes alegorias. -reanimou-se Fred.

- Isso, isso. Acho que vocês pegaram a idéia. - Dick alterava novamente o seu semblante. - Vamos pensar em algo simples de início, como... hmmm... sei lá, pinturas nas cavernas. E logo após desenvolver a escrita, para podermos preservar de uma maneira mais ou menos eficiente todas essas idéias.

- Acho que sei quem pode nos ajudar com a matéria-prima, tintas, panos, peles de animais e tudo o mais.- e, de uma maneira mais espetacular do que entrou, Dick deixou o recinto, feliz pela eficiente germinação de suas sementes - Ei meninas ! Meninas, precisamos de uma mãozinha aqui.

sábado, 29 de dezembro de 2007

Pegadas na Areia

O vento continuava soprando. Não haviam motivos para ele parar de soprar, haviam ? Ora para o leste, ora para o oeste, o vento continuava em sua incessante marcha, nos resfriando, roubando nosso precioso calor à medida em que avançávamos. Sempre em frente, superando os obstáculos à medida que iam surgindo. Se alguém ousasse olhar para trás, poderia vislumbrar as pegadas que deixávamos enquanto seguíamos viagem. Elas se perdiam no escuro horizonte, nos fazendo lembrar o quanto já havíamos percorrido, nos enchendo de nostalgia reconfortante, alimentando nossas esperanças no futuro. Algum dia, eu repetia para mim mesmo diariamente, nós encontraríamos uma chama acalentadora neste deserto frio, nesta ventania constante. Sim, eu possuo a doença dos sonhadores...

Era um dia de chuva torrencial quando o estopim foi aceso. Enquanto me distraia observando as pegadas que meus vizinhos da frente deixavam, não pude deixar de notar uma nova la de pegadas, bem no extremo direito da geodésica, que havia surgido repentinamente. O seu misterioso aparecimento me deixou tão perturbado que demorei alguns instantes antes de me atentar para o estranho fato das novas pegas estarem invertidas. Sim, elas apontavam para o Sul!

- Olha só que engraçado. As pegadas apontando para o sul.

- Olha pra frente cara !

- Relaxa, tá tudo sob controle. Mas, essas pegadas, elas são realmente instigantes.

-Bobagem. Algum idiota querendo pregar uma peça em alguém deve ter começado a andar de costas, só para tirar uma onda. Essa molecada de hoje é cheia dessas.

- Sei...

Na verdade, eu não sabia de nada. Claro que tinha entendido a argumentação daquele senhor,
mas ela não havia me convencido. Existia algo de estranho e bizarro naquelas pegadas. Toda a caminhada da humanidade havia se dado sempre na direção Sul-Norte. Como poderia ser de outro jeito ? Mas, contrariando sua razão, lá estava, aos olhos de quem quer que quisesse ver, as pegadas se dirigindo ao escuro, profundo e passado Sul. Será que, será que alguém teria ousado ? Ousado o suficiente para dar meia-volta ?

Eu não ousaria criticar o valor de uma boa piada, nem iria querer isso. O humor é uma arte apreciada pela minha pessoa. No entanto, aquelas pegadas há muito já haviam ultrapassado o limite de uma simples traquinagem de um jovem livre para gozar a vida. Não, eu tinha me deparado com algo profundo, intrigante e desafiador. E eu não poderia me dar ao luxo de perder uma oportunidade dessas. Assim sendo, numa fria e seca noite, eu reuni toda a minha curiosidade e espírito aventureiro, dei meia-volta e me coloquei no encalço das misteriosas pegadas e do elemento, quem quer que seja, que as criou e, imediatamente, as descartou num movimento simples e distraído de como aquele que se livra do gás carbônico gerado incessamente pelo seu organismo. Em minha viagem para o passado encontrei muitas pedras bloqueando o caminho. Risos e críticas bem(?)-humoradas eram dirigidas contra mim, enquanto meu corpo obstinado permanecia com sua trajetória inalterada.

- Rá, rá ! Olha lá o Curupira, andando pra trás !

- Será que ele esqueceu alguma coisa no caminho e tá vindo buscar ?

- Hahahahahaha !!!

- Não, não pessoal. Aposto que ele tá correndo atrás de alguma rapariga que tá fugindo dele !

As pessoas que se dirigiam para o Norte liberavam sonoras gargalhadas ao cruzarem meu caminho. Me pergunto o que o autor do meu atual caminho sofreu em sua jornada desbravadora pelo passado...

Estranho. O sol já havia nascido há tempos, mas o vento continuava soprando da direita pra esquerda, como se fosse noite. Será que a direção para a qual você está caminhando também inuenciava na direção em que o vento sopra, além, é claro, da hora do dia ? Sim, claro, só podia ser isso. Se você está andando do Sul para o Norte, de dia o vento sopra da esquerda pra direita, invertendo a sua direção a noite. Porém, se você inverter a direção em que você caminha, tudo é invertido ! É como um tipo de carga, que invertemos ao trocar o Norte pelo Sul como alvo de seu percurso. Interessante...

Fazia tempo que o meu percurso havia se distanciado das geodésicas mais próximas. Estava sozinho, apenas eu e as pegadas à minha frente. Já não aguentava mais a solidão, e o medo de passar tantas diculdades por nada já empurrava meus ombros para perto da areia. Assim, foi no meio de tantos nadas, tantas ausências, tantos momentos de total introspecção, que ele me apareceu pela primeira vez...
***

Creio que me faltam palavras para expressar a decepção que se apossou de meu ser ao ver aquela pilhérica figura vindo em minha direção, diretamente do horizonte, de costas ! Dolorosos flashbacks me assombraram instantaneamente:

- Bobagem. Algum idiota querendo pregar uma peça em alguém deve ter começado a andar de costas, só para tirar uma onda....Rá, rá !

- Olha lá o Curupira, andando pra trás !...Essa molecada de hoje é cheia dessas....Pregar uma peça em alguém...

O desamparo que se apossou de minha alma era tão pesado que simplesmente parei de andar, apoiei as mãos em meus joelhos, arcados pelo peso dos sonhos frustrados. Todos estavam certos, foi um erro estúpido ter vindo até tão longe, por nada.

O andarilho estava mais perto. Ele andava bem rápido, para alguém que gosta de sair andando por aí de costas. Cabelos compridos, roupas mal tratadas, ritmo regular. Não faltaria muito para poder enxergar o rosto do corno que havia me pregado a maior peça da minha vida.

Então, como um estouro de fogos de artifícios vistos por um polvo que descansava no leito oceânico, uma idéia surgiu, surda e surpreendente, em minha confusa e anestesiada mente. Estava num lugar deserto, onde as únicas geodésicas visíveis num raio de quilômetros eram aquela que ele havia seguido e a nova sendo criada pelo andarilho. Era óbvio ! A primeira havia, provavelmente, sida feita pelo próprio andarilho, mas desta vez ele devia estar andando para frente ! No momento, o que ela presenciava era o seu retorno onde, talvez como um artifício para distrair o stress da viagem, ele tenha decidido, pilheriamente, realizar um trecho da jornada de volta de costas. Isso não tirava o mérito de sua viagem de ida, tirava ?

O andarilho havia ultrapassado o ponto onde eu descansava sentado. Antes que eu ousasse esboçar alguma reação, senti que ele havia parado de andar e passara a me observar. Quase tive um ataque cardíaco quando ouvi um voz serena no meio do deserto:

- Que engraçado...

- Oi ?

- Você, aqui. No meio do nada, sentado, parado em cima da minha antiga trilha, sem ir para frente ou para trás. Sabe como é, as pessoas não costumam muito quebrar a rotina do sempre em frente.

- Sim, err... É verdade - não sabia o que dizer, não tinha se preparado para um possível encontro e posterior diálogo com o andarilho. Felizmente, o andarilho parecia muito mais à vontade com a situação.

- E aí ? O que você procura ?

- Como ?

- A maioria das jornadas difíceis requer um objetivo, por mais abstrato que ele seja. Qual é o seu ?

- Err... Eu estava procurando a pessoa que fez estas... - as palavras saíam vacilantes de minha boca - marcas.

- Marcas ? Ah, você se refere às minhas pegadas ?

- Sim.

O andarilho gargalhava sonoramente. O mundo ao redor girava numa velocidade alucinante.

- Bom. Cá estou. Receio que a minha pessoa não seja lá um objetivo tão valioso assim para motivar a sua jornada. Agora que você está aqui, seria prudente de sua parte, e interessante também, que você arrumasse um objetivo melhorzinho, não acha ?

Depois de alguns eternos segundos, disse timidamente:

- O meu sonho é encontrar uma fonte de calor, uma chama, algo assim. O pessoal lá na frente, digo, atrás, apreciaria muito.

- Fogo ! Uma das descobertas mais excitantes de todos os tempos. - seus olhos crispavam, repletos de empolgação e, eu imaginava, nostalgia - Você está com sorte meu amigo, se você nadar alguns metros naquela direção, achará o que procura. Quando passei por lá não dei muita bola, mas creio que você e seus amigos acharão alguma utilidade para tal presente dos deuses.

Tentar seguir a linha de raciocínio do andarilho era uma tarefa impossível para mim. Mal entendia suas estranhas palavras. Me contentei com a pergunta óbvia:

- Que direção ?

- Essa aqui. - O dedo do andarilho apontava, não para frente ou para trás, mas para uma direção intermediária !

- Na direção do mar ?

- Sim, sim. É só você nadar alguns metros que você vai achar o que procura. Confesso que não é ma tarefa muito fácil, ainda mais neste frio.

Mas, convenhamos, - o andarilho exibia um sorriso que era um misto de sabedoria e deboche - nada raro é fácil de se obter, por denfição.

- Nadar ?

- Sim, nadar. Qualquer peixe faz isso não ? E eles nem precisam de fogo! - novas gargalhadas - Bom meu amigo, devo ir agora. Boa sorte em sua jornada, e nos vemos por aí.

Tão rápido quanto apareceu no horizonte, ele desapareceu no horizonte oposto. Mas suas palavras reverberavam em minha cabeça. Nadar ele dizia, nadar ! Ele não ousaria tanto. Por outro lado, ele tinha vindo até ali não ? Seria covardia de sua parte dar mais um passo adiante, não ?


***


Encharcado, tremendo de frio e feliz, eu percorria o trajeto de volta, carregando em minha mão a chama da vitória. Uma vela queimava incessantemente, vela estava que encontrei num pequeno bote à deriva no mar. A alegria da conquista era tanta que ofuscava a expectativa em retornar para o meu povo com aquele presente dos Deuses. Lembrando do meu amigo andarilho, comecei a andar de costas, uma pequena homenagem àquele responsável pelo calor que sentia em minhas mãos. Com uma certa nostalgia, me lembrei da pergunta que nunca havia feito a ele, a pergunta que me asombraria, de uma maneira inspiradora, por toda a vida. Qual seria, afinal de contas, o objetivo da jornada Dele ?