quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Embriões e Cordeiros

Juca estava parado no corredor da morte e era eventualmente empurrado para frente, sem possibilidades de retorno. Ele possuía um problema numa das válvulas do coração que fazia com que o seu sangue venoso da sua pequena circulação localizado em um dos ventrículas se misturasse com o sangue arterial da sua segunda circulação no outro ventrículo (ou algo parecido, Juca não se lembrava de todos os detalhes médicos). Fato era de que Juca desde criança não podia jogar uma partida de futebol sem ficar extremamente cansado e adquirir um tom arroxeado em sua pele. O que atormentava Juca não era a morte eminente mas sim o conhecimento de que se ele pertencesse a uma classe econômica mais abastada ele poderia sobreviver por muitos anos ainda, vivendo uma vida completamente normal com um coração novo geneticamente compatível com o seu corpo, porém com uma válvula 100% operacional. O problema é que uma clonagem de coração típica custava alguns milhares de reais a mais do que o orçamento de carpinteiro de seu pai poderia pagar.

- Os caminhos de Deus são repletos de mistérios meu filho - consolava o padre no confessionário - Você deve ter perseverança para aceitar o que não pode mudar.

- Eu sei padre, eu sei de tudo isso. - Juca estava repleto de uma serenidade enigmática - O problema é o seguinte. Não consigo parar de pensar no fato de que se eu tivesse nascido na Europa, a renda que meu pai obteria com seu ofício seria o suficiente para pagar os meus cuidados médicos. Sabia que uma clonagem de coração na Europa custa menos que mil euros ?

- Deus não dá a ninguém algum problema sem que ela tenha a força necessária para superá-lo - recitou o padre depois de alguns segundos de desconfortável silêncio.

- Sim, eu também acho as passagens bíblicas consoladoras padre. Existe uma outra, repleta de sabedoria, que diz algo como "você colhe apenas aquilo que planta", não ?

- Você acha que cometeu algum pecado que causou a sua atual enfermidade meu filho ?

- Não, não. Não foi isso que eu quis dizer. Veja bem, a trinta anos atrás, quando meu pai ainda era adolescente, houve uma polêmica no Brasil com relação à pesquisa com células-tronco. A igreja, ou seja, vocês alegavam que era errado os cientistas da época continuarem com suas pesquisas utilizando células embrionárias, pois "desde o momento da concepção o ser humano é dotado de uma alma e seria um pecado acabar com tantas vidas em prolda pesquisa científica". O senhor se lembra disso, não ?

O padre não respondeu e, se Juca pudesse vê-lo através do semi-espelho do confessionário o veria baixar os olhos vergonhosamente.

Mesmo com a alegação dos cientistas que apenas utilizariam embriões que não teriam chance de se desenvolverem se por ventura fossem implantados em algum útero, o clero continuou batendo o pé gritando aos quatro ventos que não permitiria tal ato de "atrocidade". Veja só que ironia padre, que pensamento medieval em pleno século XXI ! Todo mês a mulher, no final do seu ciclo fértil, elimina um ou mais óvulos que não foram fecundados. No mínimo uma vida (ou metade de vida, se você preferir) por mês. O homem cada vez que ejacula realiza um espermicídio de milhões. No século XX já eram implantados meia dúzia de embriões perfeitamente saudáveis no útero de uma mulher com dificuldades em engravidar, com a esperança de que pelo menos um sobrevivesse. Ninguém dava muita bola para os irmãos de um bebê de proveta que morreram no caminho. Mas eles tinham que implicar com as células-troncos, não ? E os cordeirinhos tinham que seguir tudo o que os seus pastores pregavam. No final, os embriões que seriam utilizados morreram de qualquer jeito, porque eles não eram saudáveis o suficiente para serem implantados num útero com sucesso e agora, 30 anos depois, todo brasileiro que necessita de um órgão clonado precisa pagar uma fortuna para um país cujos cientistas tiveram a oportunidade de aprender a clonar órgãos e patentear a tecnologia. No fim das contas, vocês foram responsáveis pela morte de todos nós, enfermos da classe média para baixo, que não temos tal fortuna para pagar um procedimento médico que já é rotineiro nos países desenvolvidos.

Um silêncio de um ou dois minutos encheu o confessionário, atingindo a alma do padre como uma gélida brisa vinda diretamente dos pecados do passado, pecados seus, de sua classe e de seus "cordeiros". Sem saber direito o que dizer, por fim perguntou:

- Meu filho, o que você procura aqui ? O que quer de mim ?

- Não quero nada padre. O que foi feito já está feito. Só vim aqui hoje porque não sei quanto tempo me resta neste mundo e queria me despedir dele. O escolhi como representante de sua classe por mera conveniência. Era a igreja mais perto do meu leito de morte. Minha família tentou me coagir de tal idéia, porém eles não se sentem à vontade negando os últimos desejos de um morimbundo. Estou indo agora Padre. Se você quiser, reze suas ave-marias e seus pai-nossos você mesmo. Porém eu não teria muitas esperanças de que fosse adiantar alguma coisa. Adeus Padre. Te vejo no inferno...

3 comentários:

Perséfone disse...

A igreja católica, por incrível que pareça, defende a idéia estúpida de que um mero pedaço de carne de alguns centímetros, possa ter uma "alminha"... Isso para condenar o aborto e a liberdade da mulher em decidir sobre seu corpo, levando com que milhares de jovem façam clandestinamente abortos em situações de riscos, como vi várias amigas fazerem. O aborto em si já é bem traumatizante, e associada a falta de higiene e a médicos que mais parecem açougueiros, torna essa experiência quase como um filme terror trash...
Seria importante ver as nossas autoridades perceberem que o alto índice de aborto praticado no país, revela a urgência com que a lei seja aprovada, esclarecendo, que falas hipótricas como a do padre, personagem do seu texto, só tolem a sagrada liberdade do ser humano vivo e consciente, de assumir as responsabilidades pelos seus atos.
SEJAMOS LIVRES,E PASSEMOS A PENSAR POR NÓS MESMOS!

Presidente - Fernando Luz disse...

Gostei do texto...
daqui a poucco vou te incentivar a escrever um livro de crônicas...



AbraçÕes

Ayanie disse...

Você me dá medo!