terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

A mulher do mitômano

- Foi mal Marcão, não vou poder ir ao jogo com vocês. Peguei uma gripe ferrada, vou ficar de cama. - Ao dizer tais palavras ao telefone, Roberto observou o ar gélido que Alice dirigiu em sua direção. Um par de olhos claros, penetrantes, que agilmente se levantaram do grosso volume de psicologia para o fitarem em evidente tom de reprovação. Desviou rapidamente o olhar enquanto se despedia do amigo. Se virou para a esposa, após retornar o fone ao gancho, com a certeza de que aqueles olhos ainda estavam voltados para a sua pessoa com uma temperatura que arrepiaria os pêlos da nuca de um esquimó.
- O que foi ?
- Nada. - O olhar glacial retornou ao livro num piscar de olhos.
- Alice, eu te conheço muito bem. Você estava com o olhar zero absoluto de novo.
- Se você me conhece tão bem, nem preciso dizer o que penso, não é mesmo ? Gostaria de conseguir esconder meus pensamentos de você do mesmo jeito que você esconde uma "gripe ferrada" de mim.
- Mas Alice, eu já disse que não sou mitômano! - Roberto contou, mentalmente e rapidamente, até dez. Sempre tinha que se esforçar para controlar sua raiva quando Alice dirigia seu afiado sarcasmo em sua direção. - Achei que você queria ir ao cinema comigo.
- Receio que não vamos poder. Melhor ficarmos em casa, eu faço um chá e ficamos a noite inteira debaixo das cobertas assistindo algum programa no Discovery Channel, que tal ? - Alice ostentava um leve e discreto sorriso que durou exato um segundo e meio.
- Alice, eu não estou gripado ! - Ele sabia que entregava numa bandeja prateada o tão esperado prêmio de Alice: sua confissão.
- Ora, quer dizer que você mentiu para o seu bom amigo Marcão ? Achei ter ouvido algo sobre você não ser nenhum mitônamo. Ah, mas que bobagem a minha. Nada mais natural para um mitônamo dizer que NÃO é um mitônamo. - novo sorriso.
- Alice, quantas vezes vamos bater na mesma tecla ? Já conversamos sobre o papel da mentira na nossa sociedade como um apaziguador social, como uma ferramenta indispensável na aparação das arestas dos conflitos sociais. Como algo ao qual cedo ou tarde precisamos recorrer para evitar certos tipos de constrangimento.
Alguns segundos se passaram, Alice respirou profundamente e relatou a história de um primo seu que era mitômano. Descreveu como ele se utilizava de mentiras e fantasias, desde criança, como uma forma de valorizar seu ego perante as pessoas. Com lágrimas nos olhos, diz que se arrepende de nunca ter conversado com ele sobre isso, principalmente depois de descobrir, um ano após seu suicídio, que depressão e tendências suicidas estão frequentemente associadas com mitomania. Não demorou muito tempo para Roberto telefonar ao seu amigo e contar o verdadeiro motivo que o impedia de ir ao jogo. Os olhos marejados de emoção de Alice possuíam um efeito maior sobre ele do que os gélidos, e ela sabia disso. Não pôde deixar de conter um sorriso, enquanto secava seus olhos no espelho do banheiro, ao pensar na ironia que era tentar curar um mitômano se utilizando de uma mentira deslavada. Era como tentar curar um fumante crônico soprando fumaça em sua cara, ela sabia, mas nunca havia tido nenhum suicida em sua família e não estava disposta a começar a ter.

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente texto! Creio que muita coisa boa virá quando vc decidir publicar um livro.
E adorei o tema também, justamente por ser algo com o qual temos de lidar todo santo dia: mentir ou não mentir? Será que a outra pessoa realmente merece a verdade? Será que a verdade é mesmo a melhor coisa?
Por mim, sempre tento ser sincera... embora tenha descoberto, com o passar dos anos, que nem todo mundo merece isso vindo de mim. Aí fica difícil... aprender a mentir do jeito certo, na hora certa, pelo motivo certo, é uma arte para poucos.
Beijo beijo, escritor ;***************